As preocupações éticas sempre se aguçam quando se trata de apropriação, controle ou distribuição privada de um bem ou direito públicos. Assim como os mares, o ar e as formas de vida são patrimônio comum, o mesmo ocorre com conquistas históricas como o direito à vida e à saúde, de livre reunião e opinião, à justiça e à informação. O inverso disso se chama genocídio, grilagem, despiste, abuso de autoridade e mercantilização viciada.
Nesse contexto, a informação é considerada um bem público porque presta um serviço vital à democracia e possibilita uma participação equitativa no poder político e econômico. A democracia se apresenta como um critério ético fundamental para a comunicação na medida em que fornece condições de sermos todos iguais em direitos, deveres e dignidade; sem ela, mergulhamos no arbítrio, na barbárie, no pântano dos privilégios e da corrupção.
Devido a sua característica pública, a informação não pode ser tratada como propriedade privada, sendo sua divulgação via empresas um objeto de concessão e controle por parte das instituições sociais. Dessa forma, uma das maiores rupturas éticas atuais na sociedade brasileira resulta da tendência à concentração da propriedade dos meios de comunicação e de sua manipulação por parte de grupos políticos. Daí decorre um grau inédito de empobrecimento da vida cultural e da cidadania, que se aprofunda com a depauperação das condições de trabalho e com a manutenção do histórico analfabetismo no Brasil. Com efeito, não é que a mídia "seja forte", mas o fato é que ela se fortalece perante a audiência na medida em que as relações comunitárias se dissipam, os processos laborais se embrutecem e esvai-se a participação (política) da sociedade nos próprios rumos. A luta pela democratização da comunicação, por uma "reforma agrária do ar", é fundamental na construção de uma sociedade em que homens e mulheres são respeitados em sua igual dignidade e disponham de elementos para decidir autônoma e conscientemente sobre suas vidas (Bucci, E., Sobre ética e jornalismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000).
A ética no jornalismo se insere no quadro geral de serviços a serem prestados pelas sociedades: saúde, educação, justiça, sistema partidário, cultura. A presente reflexão tem duplo alcance: estuda o caso particular do jornalismo, mas também se apresenta como metáfora para outras áreas do conhecimento e do ensino, pois todas elas passam pelos mesmos processos históricos que, nos últimos séculos, vêm moldando as sociedades ocidentais.
Espírito libertário
Considere-se, preliminarmente, que o jornalismo é uma atividade complexa que inter-relaciona diferentes atores. Ela envolve a sociedade (o público-leitor, as instituições, atores econômicos como a publicidade e os fornecedores), as empresas (mídia impressa, eletrônica e virtual) e os profissionais (jornalistas em diversas funções) e o sempre cambiante cenário histórico. O jornalismo apresenta também elevado grau de conflito e contradição, dos quais a sociedade espera obter como produto final nada menos que a informação veraz e a opinião confiável, paralelamente à denúncia quando esse resultado não é alcançado.
O ponto de partida de uma discussão sobre ética no jornalismo pode ser qualquer um dos atores envolvidos: sua interligação aos demais permite o acesso ao conjunto. No presente texto, escolhemos como foco o profissional da notícia, cujo futuro é sujeito de nossa docência.
Sendo a ética uma ciência do ethos, da identidade, sua tarefa é buscar por que e em quais condições determinada ação ajuda a construir uma nação, um grupo ou pessoa. Ora, a identidade não é algo definitivo nem uma substância imutável mas, como tudo o que é vivo (e, mais que isso, humano), passa por fases em que se entremeiam dúvida, estagnação, amadurecimento e plenitude. A seguir, veremos de que forma as metamorfoses sofridas pelo jornalismo produziram a atual identidade da profissão e do profissional, quais suas contradições, impasses e possibilidades.
Historicamente, a imprensa foi veículo de idéias e propostas guiadas por um espírito libertário, de busca da verdade e de denúncia de injustiças. Ela foi qualificada como "estalão do progresso", "defensora do povo", "evangelho da democracia", "sagrada indústria". Um dos fundadores do jornal que hoje se denomina Folha de S. Paulo, Olival Costa, qualificava o jornalismo como "a maior de todas as advocacias: a defesa do interesse público" (Ribeiro, Jorge C., Sempre Alerta – condições e contradições do trabalho jornalístico, São Paulo, Olho d’Água/Brasiliense, 1994, p. 31). Claro que houve, e há, veículos de comunicação a serviço dos poderosos do dia: sobre eles pesa a permanente suspeita de não serem instituições tão isentas quanto apregoam. Ao mesmo tempo em que, no Estado Novo e na ditadura militar, alguns veículos eram censurados e reprimidos, outros recebiam "as verbas [que] engordam receitas de jornais, revistas, agências noticiosas, empresas de propaganda, emissoras de rádio. Subsídios ao papel e importação de equipamentos gráficos e de som favorecem os que colaboram com o poder e douram a pílula totalitária" (Bahia, J. Jornal, história e técnica, São Paulo, Ática, 1990 Tomo 1, p. 309).
Crise de crescimento
Apesar dessa ambigüidade, é imperioso que a mídia sirva à democracia. [Prefiro o vocábulo "mídia" quando se trata de todo o sistema que inclui uma imensa variedade de meios de comunicação voltados para a difusão de informações (jornalismo) e entretenimento. A palavra "imprensa" se refere exclusivamente a veículos impressos, não cabendo expressão como "imprensa falada, escrita e televisada".] Ela mesma tem razões até comerciais para isso, pois se trata de uma imposição do mercado. Embora a matéria-prima mais óbvia dos jornais seja papel e tinta, há insumos mais sutis e bem mais importantes: a atualidade (por definição, "notícia velha" deixa de ser notícia) e sobretudo a credibilidade, seu tesouro mais precioso. Se qualquer outra empresa distribui produtos ou serviços falsificados, torna-se um caso para a Justiça – o mesmo deveria ocorrer com um meio de comunicação que divulga apenas versões oficiais, fatos sem verificação, impressões, boatos e, pior, informação falsa (ainda mais que a informação veraz é o mais valorizado dos insumos econômicos). Se um veículo de comunicação deturpar os fatos, e for desmascarado, perderá leitores e merecerá a condenação dos tribunais. Mesmo porque a concorrência está aí para aproveitar qualquer deslize dos adversários.
Como todo organismo vivo, ao longo de sua história o jornalismo passou por inúmeras metamorfoses: as Actas Diurnas (ou diurnalia, daí, jornais) afixadas nos muros da Roma antiga; relatórios comerciais manuscritos das grandes empresas da Revolução Comercial; a volumosa correspondência de viajantes, espiões e conspiradores, lida e debatida nos elegantes salões iluministas; as gazetas semanais impressas a partir de 1609 na Alemanha; a partir de 1702 na Inglaterra, o Daily Courant, primeiro diário do mundo. Para se ter uma idéia da nossa defasagem histórica nesse campo, no Brasil a imprensa diária foi inaugurada em junho de 1822, com o Diário do Rio de Janeiro.
Com a Revolução Industrial na Europa e EUA, e aproveitando a existência de um vasto público alfabetizado, ávido por informações e distração, as tiragens dos diários cresceram e, como conseqüência, caiu o preço do exemplar. A partir do início do século 20, a imprensa deslanchou como negócio. Criaram-se grandes conglomerados e redes: a imprensa passou por uma crise de crescimento e de ética, apresentando problemas derivados do sensacionalismo, falsificação de informações e subserviência política.
Epiderme da sociedade
Paralelamente ao processo do jornalismo e inclusive anterior ao surgimento da imprensa, a identidade (profissional e ética) dos jornalistas, seus principais agentes, também sofreu metamorfoses. As referências mais importantes eram as figuras do escritor e do político. A atividade jornalística foi tribuna paralela de muitos políticos e palco de estréia dos mais importantes escritores (entre nós não faltam exemplos: Cipriano Barata, Frei Caneca, Rui Barbosa, Machado de Assis, José de Alencar, Euclides da Cunha e Carlos Drummond de Andrade, só para citar alguns clássicos) (Ribeiro, J. C., op. cit. , p. 19-35).
O jornalismo foi até comparado ao púlpito. Fernando Pessoa escreve, num jornal, que "a religião e o jornalismo são as únicas forças verdadeiras; o jornalismo é um sacerdócio porque tem a influência religiosa dum sacerdote" (Pessoa, F., "Argumento de jornalista", in Obras em prosa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1972, p. 283). Essa tradição do jornalista boêmio, criativo, altamente vocacionado e um tanto subversivo perdura até hoje no imaginário da sociedade, sendo elemento inspirador de crescentes contingentes de jovens que procuram a profissão.
No entanto, instaurou-se uma crise de identidade a partir do momento em que essa imagem heróica do jornalista foi sendo sistematicamente esmagada pelas empresas. O profissional viu-se ferido em sua atividade e em seu íntimo, e sofreu uma transformação semântica: o jornalista deixou de ser "aquele que milita no jornalismo" para tornar-se "aquele que trabalha na mídia".
Crescentemente regida por uma lógica empresarial, por procedimentos industriais e por estratégias comerciais - e não poderia ser de outra forma, dadas as dimensões gigantescas do empreendimento e a agressividade da concorrência - a imprensa, e a mídia em geral, precisaram subjugar a seus métodos aqueles profissionais inquietos e utópicos cuja principal habilidade é ser a epiderme da sociedade.
Mecânica taylorista
Mas, é preciso perguntar: "De qual mídia se trata? A que democracia ela serve?". Sendo integrantes do contexto capitalista, essas empresas encarnam a seu modo os valores da sociedade neoliberal em que se inserem. Sua face-empresa é de tal forma determinante que em suas preocupações reduzem o fator humano, seja em seus processos, seja em seus produtos. Elas precisam funcionar como uma máquina bem lubrificada e seus materiais resultam homogeneizados, pouco surpreendentes e com freqüência mistificadores da realidade.
Enquanto fator econômico, os receptores representam um interesse de segundo nível para as empresas. Estas "alugam" seu público para a publicidade: a venda do espaço publicitário é responsável por 85% da receita dos jornais e a venda dos exemplares responde pelos restantes 15%. Assim, quanto maior a tiragem ou a audiência, mais se cobra dos anunciantes, mais barato é cada exemplar. No caso da TV aberta, a publicidade cobre 100% da operação. Nesse quadro, a mídia corre o risco de deixar-se esmagar pelo próprio peso, produzindo materiais de consumo rápido, sensacionalistas, superficiais e conservadores, suscitando o tédio e abdicando de sua função histórica. Observa-se crescente despolitização dos jornais, reduzidos a vitrine de brindes, sorteios, cupons e anúncios classificados.
Nesse quadro de avassaladora mercantilização, muitos jornalistas procuram resistir e afirmar sua identidade profissional, percebendo que também eles correm o risco de virar mercadoria. Isso ocorre mediante três processos, agressivamente autoritários: a coerção fabrica o medo mediante punições, sobretudo demissões, prática corriqueira e antiga nas redações; o manejo da tensão em que essa atividade intelectual é reduzida à mecânica taylorista das linhas de montagem; o aliciamento, mediante promessas, promoções e estímulos para quem se submeter à lógica da empresa.
Submissão premiada
É expressivo o testemunho de Raul Drewnick, antigo jornalista do Estado de S.Paulo: "A profissão perdeu o charme; hoje o jornalista é um profissional como outro qualquer, que chega, cumpre seu horário e não tem sua atividade reconhecida. A não ser em filmes, sobretudo de Hollywood, na prática não se vê aquele charme antigo. Quando entrei no Estado, os repórteres eram consideradíssimos. A figura do repórter caiu muito. O jornalista que começa como repórter tem muita desilusão porque não pode ser como os de antigamente. Ele praticamente passa informação por telefone, para não atrapalhar o fechamento da edição" (Ribeiro, J., op. cit., p. 202).
Resistência à imposição de valores e procedimentos identificados como inadequados e afirmação das convicções pessoais e profissionais são duas faces da construção de uma identidade (= ética) do jornalista-cidadão contemporâneo. No cotidiano das redações, essa discussão é freqüente e intensa, o que revela o quanto esse conflito é profundo e ainda dói.
Encasteladas numa sensação de onipotência, as empresas proclamam que é censura qualquer tentativa de colocar-lhes limites. Contrariamente à abrangência de universalidade, intrínseca à ética, elas relutam em assumir padrões ao caso particular delas mesmas. Tendo em vista uma credibilidade ciosamente cultivada, apresentam-se como campeãs da moralidade, pregando princípios para o restante da sociedade... com exceção da parcela anunciante dessa sociedade. Isso não significa que a mídia não aceite princípios: em geral, adotam valores médios do público, isto é, do mercado. Algo como um bom-mocismo mediano, cujos deslizes não dêem muito na vista.
Com seus jornalistas, a norma das empresas é a submissão premiada. Observei, no entanto, que, para muitos deles, seguir a verdade é uma questão de honradez pessoal e profissional, numa cruzada que recruta quase toda a civilização. Segundo Adelmo Genro Filho, convicções pessoais ou objeções de consciência são uma frente de batalha que "pode e deve ser travada dentro dos jornais e veículos sob controle da burguesia, a partir do escasso mas significativo espaço individual dos repórteres e redatores em relação às editorias, e do espaço igualmente importante das redações no seu conjunto frente a diretores e proprietários" (Genro Filho, Adelmo, O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre, Tchê!, 1987, p. 143).
Arco de alianças
Com freqüência, na ânsia de se sobressair frente a seus empregadores, alguns jornalistas ultrapassam os limites da ética quebrando o sigilo das fontes, invadindo a privacidade de pessoas e inventando acontecimentos. Aceitar a visão do dono do jornal é uma forma de capitulação ética, em que o indivíduo abre mão de sua condição fundamental de cidadão e profissional. As variantes dessa capitulação são a falta de empenho em investigar a veracidade de informações, a preguiça intelectual e moral, o uso mecânico de fórmulas, o estilo autoritário de comando sobre os subordinados. Desvio infelizmente comum é o que denomino "síndrome da perna de pau", em que o profissional incorpora como seu o poder enorme poder emprestado pelo veículo de comunicação. Atribuindo-se uma estatura que não é a dele mesmo, confunde sua pessoa física com a pessoa jurídica da empresa e usa essa condição para chantagear, arrancar favores ou, simplesmente, considerar-se acima do comum dos mortais, lá em baixo.
Até jornalistas engajados na luta ética caem com freqüência em outra armadilha, que é considerar-se uma espécie de caubói solitário e juiz incorruptível. Embora a ética profissional e pessoal se origine de um compromisso pessoal, ela só se aprofunda e se mantém no interior de um processo solidário. Por envolver grupos diferentes - leitores, sociedade, empresas e profissionais - , a produção jornalística deve promover um acordo geral que priorize os interesses da maioria e a construção de uma democracia que não seja limitada a um segmento.
Porque interessa a toda a sociedade, a luta pessoal de jornalistas e de suas entidades só ganha efetividade quando articulada a um amplo arco de alianças. Nesse quadro, são especialmente significativas a educação e a cultura, que possuem capilaridade para inspirar a formação de âmbitos e indivíduos críticos, capazes de oferecer(-se) alternativas à massificação e à manipulação das mentes. Essa luta comum deve adquirir efetividade política, a qual crescerá à medida que a sociedade apresentar suas exigências de aperfeiçoamento democrático para suas instituições. Dentre elas, uma das mais cruciais é a mídia.
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